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ÁGUA EM DEBATE - Pesquisadores divergem sobre a gestão hídrica no Cerrado baiano

ÁGUA EM DEBATE - Pesquisadores divergem sobre a gestão hídrica no Cerrado baiano

Data de Publicação: 26 de outubro de 2024 20:10:00 O debate sobre o uso dos recursos hídricos no Cerrado baiano coloca em evidência as diferentes abordagens dos pesquisadores e a urgência de soluções sustentáveis. Com opiniões divergentes, cientistas buscam um consenso sobre a gestão hídrica na região, essencial para o futuro da sua agricultura.

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 O debate sobre o uso dos recursos hídricos no Cerrado baiano coloca em evidência as diferentes abordagens dos pesquisadores e a urgência de soluções sustentáveis. Com opiniões divergentes, cientistas buscam um consenso sobre a gestão hídrica na região, essencial para o futuro da sua agricultura.

 

 

Irrigação por pivot central em Luís Eduardo Magalhães (Foto: Antônio Oliveira)

Por Antônio Oliveira

- O uso excessivo de água na região do MATOPIBA pode comprometer até 40% da capacidade futura de expansão da irrigação. É o que revela uma pesquisa liderada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O estudo mostra que a superexploração dos recursos hídricos para a agricultura, aliada às mudanças climáticas, está reduzindo as vazões subterrâneas, provenientes do aquífero Urucuia, e dos corpos d'água superficiais da bacia do rio Grande, afluente do São Francisco, com o risco de enfrentar falta de água já nos próximos anos.

Entre 30% e 40% da demanda por irrigação de terras agricultáveis pode não ser atendida no período de 2025 a 2040 devido à superexploração dos recursos hídricos – diz a pesquisa divulgada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Para os pesquisadores, somado às mudanças climáticas, a agricultura irrigada no Cerrado baiano está reduzindo as vazões subterrâneas – provenientes do aquífero Urucuia – e dos corpos d’água superficiais da bacia do rio Grande.

- A redução desse fluxo pode comprometer o atendimento a demandas como o abastecimento urbano, de populações ribeirinhas e o próprio agronegócio, sem contar a diminuição da disponibilidade para toda a bacia - aponta a pesquisa.

O estudo, já concluído, analisou a sustentabilidade de longo prazo da expansão agrícola em meio à crescente escassez de água na região. O trabalho, idealizado pela cientista do Inpe Ana Paula Aguiar e realizado em parceria com o Centro de Resiliência de Estocolmo (Suécia), aponta que deve haver um aumento de até 40% na energia para irrigação, pressionando ainda mais o sistema.

 
Monocultura (segunbdo legenda da Agência FAPESP) em São Desidério (BA), na região conhecida como MATOPIBA (Foto: Palácio do Planalto/Wikimedia Commons)

Para fazer a análise, os pesquisadores usaram um modelo de dinâmica de sistemas – uma ferramenta que permite representar as complexas interações e feedbacks entre uso da terra, energia e água, além de simular diferentes cenários, observando como é a reação ao longo do tempo. Isso ajuda na tomada de decisões e na implementação de políticas públicas mais eficazes.

- A dinâmica de sistemas considera uma visão holística, simulando as relações e as várias demandas – irrigação, energia elétrica, consumo – que existem simultaneamente na região. Isso nem sempre é considerado em análises realizadas por órgãos públicos - diz o pesquisador do Inpe Celso von Randow, um dos autores do trabalho.

O artigo foi publicado na Ambio – Journal of Environment and Society e é parte do projeto Nexus – Caminhos para a Sustentabilidade, coordenado por Jean Ometto, pesquisador do Inpe e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG). O projeto buscou propor estratégias para viabilizar a transição para um futuro sustentável nos biomas Cerrado e Caatinga por meio de uma abordagem participativa, integrando métodos qualitativos e quantitativos.

O relatório técnico do Nexus, que traz informações da pesquisa do grupo e de outras desenvolvidas na região, foi lançado agora em outubro e apresentado no seminário “Contribuições da comunidade científica brasileira para a temática de combate à desertificação”, realizado na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Pesquisadores do grupo estarão, juntamente com a delegação brasileira, na Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD), na Arábia Saudita, em dezembro.

"Por isso, os pesquisadores apontam a possibilidade de estagnação da expansão da agricultura irrigada na região, levantando preocupações sobre a sustentabilidade de longo prazo do setor na bacia do rio Grande"

- A ideia do estudo nasceu de uma das oficinas do projeto Nexus, realizada no município de Barreiras (principal cidade do extremo oeste baiano). Havia uma preocupação com a sustentabilidade do sistema de irrigação. Desenvolvemos um modelo de dinâmica de sistemas para a região, mas ele pode ser aplicado a outras áreas, adaptando algumas variáveis de acordo com a necessidade - explica a engenheira agrícola Minella Alves Martins, primeira autora do artigo e orientanda de von Randow no Inpe, com o apoio da FAPESP.

Durante a oficina, os principais desafios relatados na bacia do rio Grande estavam relacionados à disponibilidade de água – tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo – e aos conflitos socioambientais motivados por seu uso e pela posse irregular da terra. Mais de 90% das retiradas de água na bacia são destinadas à irrigação, de acordo com dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).

 

Uma das oficinas realizadas em Barreiras para
montar o escopo da pesquisa (Foto: Projeto Nexus)

Os pesquisadores lembram que, nos últimos dez anos, o MATOPIBA – com 337 municípios – registrou um salto na produção de grãos de 92%, passando de 18 milhões de toneladas (safra 2013/14) para cerca de 35 milhões de toneladas. Na Bahia, as culturas de soja, milho e algodão são destaque, tendo o município de Barreiras como um dos principais produtores no Estado.

- Estima-se que na próxima década o crescimento agrícola do MATOPIBA ainda seja de 37%, com a produção atingindo 48 milhões de toneladas em uma área plantada de 110 mil km². Os números fazem parte do estudo Projeções do Agronegócio, elaborado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) - afirmam os cientistas.

Por outro lado, dizem eles, a seca severa que vem atingindo o país reduziu a previsão de produção de grãos na safra 2023/2024, especialmente no MATOPIBA. Para agravar a situação, o Cerrado bateu recorde de focos de incêndio neste ano, com 68.868 entre janeiro e 25 de setembro, superando todo o ano de 2023. É o maior número desde 2015. Com esse cenário, além de registrar aumento da temperatura, o MATOPIBA emitiu 80% dos 135 milhões de toneladas de CO2 liberadas para a atmosfera por causa do desmatamento no Cerrado entre janeiro de 2023 e julho de 2024, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

A destruição da vegetação nativa pelo fogo e o desmatamento para outros usos levam a uma redução da evapotranspiração das plantas, diminuindo a quantidade de chuva. Há ainda o fato de a água, sem a cobertura vegetal, chegar com mais força ao solo, escorrendo superficialmente e deixando de formar os canais subterrâneos.

Projeções

O modelo de dinâmica de sistemas usado pelos pesquisadores para a região mostrou que as vazões superficiais e subterrâneas tendem a diminuir até 2040. Eles levaram em consideração os usos de água atuais, as mudanças climáticas e feedbacks econômicos. Em contrapartida, haverá um aumento na demanda de água, principalmente impulsionada pela expansão da irrigação, que deve passar de 1,53 m³/s (2011-2020) para 2,18 m³/s (2031-2040).

Por isso, os pesquisadores apontam a possibilidade de estagnação da expansão da agricultura irrigada na região, levantando preocupações sobre a sustentabilidade de longo prazo do setor na bacia do rio Grande.

- Ouvimos muito na região que as retiradas de água são acima dos níveis de outorga. Então, o primeiro ponto de recomendação seria a revisão dessas permissões, justamente para que estejam de acordo com o novo normal climatológico que estamos vivendo. A série histórica pode estar defasada, levando a uma permissão acima do que é possível ofertar. Observamos, por meio de dados de monitoramento de poços da CPRM, que os níveis de águas subterrâneas estão caindo, mas esse sistema ainda é muito utilizado. Por isso, outra necessidade seria a fiscalização para proibir poços clandestinos e o monitoramento da exploração de novos locais de perfuração, visando um uso racional dos recursos hídricos - afirma Martins à Agência FAPESP.

O grupo recomenda também que seja aprimorada a fiscalização das mudanças de uso e cobertura do solo, para que áreas de recarga do aquífero não sejam comprometidas, além de incentivar estratégias mais eficientes e racionais da utilização de água na agricultura. Para estudos futuros, os cientistas sugerem a exploração de outros caminhos para adaptação às condições atuais, como a possibilidade de conectar o subsistema elétrico local à rede nacional e a criação de canais adicionais para garantir o abastecimento.

O artigo Long-term sustainability of the water-agriculture-energy nexus in Brazil’s MATOPIBA region: A case study using system dynamics pode ser lido em: https://link.springer.com/article/10.1007/s13280-024-02058-9#Ack1.

"- É um projeto que tem dado resultados muito importantes, mostrando para os produtores, para o governo, para os órgãos públicos e privados e, ainda, para a própria sociedade, onde é possível ampliar a irrigação de forma sustentável "

 

Trecho do rio de Ondas, pouco antes dele desaguar no rio Grande, manancial que é poluído ao cruzar cidades a partir de Barreiras (Foto: Antônio Oliveira)

O outro lado

A preocupação dos irrigantes do oeste da Bahia com os recursos hídricos da região, seu potencial e limites de uso, é antiga e, inclusive, motivou a criação de uma associação: a dos Irrigantes da Bahia, que, entre seus objetivos, está o de se autodisciplinar na questão do uso da água. Mais tarde, a entidade acrescentou “Agricultores” na denominação da instituição, que passou a se chamar Associação dos Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba).

E foi esta entidade que, em 2017, em parceria com a Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa) e apoio do Prodeagro, Governo da Bahia, entre outros parceiros, encomendou às universidades Federal de Viçosa e do Rio de Janeiro um estudo sobre o potencial e os limites das águas do aquífero Urucuia. Relatórios da primeira etapa da pesquisa já foram divulgados tanto pela Aiba quanto pela Abapa, conforme resultados das pesquisas das duas academias.

Para acessar o relatório da Aiba, clique aqui; da Abapa, aqui.

Os agricultores da região sabem que têm na natureza um potencial de irrigação três a quatro vezes maior do que o usado hoje, com recursos hídricos fornecidos pelos rios e pelo aquífero Urucuia. Responsavelmente, seguem a regra que os levou aos 300 mil hectares irrigados: cautela, disciplina e planejamento. Estão investindo em pesquisas para saber qual é, realmente, o potencial disponível para a ampliação da área irrigada na região e como usar esses recursos hídricos.

Daí surgiu, numa parceria com o Governo da Bahia, por meio de seus órgãos ambientais, o Projeto de Estudo do Potencial Hídrico, realizado pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Este projeto já está em sua terceira fase, conforme explicam a analista ambiental da Aiba, Glaucia Araújo; o professor da UFV, Azis Galvão; e o gerente de Sustentabilidade da Aiba, Eneas Porto.

Conforme Glaucia, essa terceira etapa é o desenvolvimento de um programa de monitoramento hídrico, onde a Aiba, por meio dos produtores rurais, em parcerias público-privadas com o estado da Bahia e seus órgãos ambientais, como a Secretaria de Meio Ambiente e o Inema (Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos), vai implementar e adensar as estações de monitoramento hídrico, com o objetivo de fazer o uso da água de acordo com a sua disponibilidade.

O projeto é ousado e, inclusive, representantes da Aiba fizeram, recentemente, mais uma viagem técnica ao estado norte-americano de Nebraska para conhecer a técnica de irrigação usada pelos irrigantes de lá. Conforme lembrou o professor Azis, esta foi a terceira viagem que técnicos da Bahia realizaram a Nebraska. Segundo ele, Nebraska é o estado norte-americano com a maior área irrigada de toda a América do Norte, sendo um exemplo de governança hídrica para os Estados Unidos e o mundo, ou seja, de como usar a água de maneira sustentável.

- É um projeto que tem dado resultados muito importantes, mostrando para os produtores, para o governo, para os órgãos públicos e privados e, ainda, para a própria sociedade, onde é possível ampliar a irrigação de forma sustentável -  disse o professor Azis sobre o projeto da Aiba.

Por sua vez, Eneas Porto enfatiza que esses estudos apontam claramente que o potencial de irrigação no oeste da Bahia – tanto pela agricultura empresarial quanto pela familiar – pode chegar a 800 mil, 900 mil, 1 milhão de hectares. Um bom exemplo do que viu em Nebraska foi dado por Eneas Porto. Conforme ele, aquele estado norte-americano tem o tamanho do oeste da Bahia e irriga 3,5 milhões de hectares.

 

Balneário Rio Corrente, em Correntina, no oeste da Bahia: águas que já passaram por fazendas de irrigação são usadas pela população da cidade (Foto: Antônio Oliveira)

Ainda na opinião de Eneas, é possível ver que isto também é viável no oeste da Bahia, a partir de uma gestão de eficiência hídrica e de monitoramento. É o que a Aiba quer realizar no Cerrado baiano, com a instalação de sistemas de monitoramento e melhoramento da atual gestão dos recursos hídricos da região. Voltando a Glaucia Araújo, ela lembra que o Projeto de Estudo do Potencial Hídrico permitiu conhecer não só o potencial do aquífero Urucuia (um grande rio subterrâneo), mas também o potencial das águas superficiais (rios), bem como a interação das duas fontes hídricas.

O aquífero, ela continuou, mantém a perenidade dos rios ao longo do ano e o monitoramento proposto pela Aiba vai permitir o uso sustentável da água, ou seja, proporcionar que os irrigantes utilizem a água de acordo com a sua disponibilidade e, ainda, garantir que todos os demais segmentos da sociedade, no consumo humano e animal, tenham a segurança da disponibilidade da água.

Sobre o Aquífero Urucuia

Ele é o maior aquífero do Brasil e sua área está toda em território nacional. São 142 mil km² (catorze milhões de hectares), dos quais 70 mil km² estão no oeste da Bahia. Ele abrange seis estados: Bahia, à esquerda do Rio São Francisco, que tem a maior parte da reserva subterrânea; extremo norte de Minas Gerais; extremo sul do Piauí e do Maranhão; e extremo leste de Goiás e Tocantins.

 

No mapa, a mancha violeta é área ocupada pelço Urucuia nos seis estados brasileiros. A maior parte, no oeste da Bahia (Divulgação)

O aquífero Urucuia tem fundamental função na vazão das bacias hidrográficas dos rios São Francisco e Tocantins. No oeste da Bahia, ele é o principal manancial subterrâneo, não apenas pelo seu uso na demanda crescente por água na agropecuária da região, mas também por sua função de reguladora dos afluentes da margem esquerda do leito médio do rio São Francisco, além de alimentar as nascentes de tributários da margem direita do rio Tocantins, nas encostas da Serra Geral.

O oeste da Bahia é privilegiado por suas terras moldáveis e de fácil mecanização para vários tipos de agricultura e por seus recursos hídricos abundantes. Felizmente, temos na região agricultores de sequeiro e irrigantes com alto grau de responsabilidade com o meio ambiente, que sabem como usar os recursos naturais à disposição deles. Que este modelo de produção rural se estenda por todo o Brasil.

*O texto que reporta a pesquisa do Ipan foi feito com base em informações de Luciana Constantino, da Agência FAPESP.

 

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