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Por que o trabalho análogo à escravidão persiste no agronegócio brasileiro?

Por que o trabalho análogo à escravidão persiste no agronegócio brasileiro?

Data de Publicação: 6 de abril de 2023 10:25:00 “Por isso a persistência do trabalho escravo também está relacionada à concentração fundiária e à seletividade racial do Estado quando o assunto são as políticas de acesso à terra no Brasil” #opinião #camila penna de castro #ana Lopes #escravidão #trabalho análogo à escravidão

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Por Camila Penna de Castro e Ana Lopes, via da Agência Bori

Há mais de um mês foram resgatados 207 trabalhadores, em sua maioria negros e baianos, em condições análogas à escravidão em vinícolas gaúchas – o que chocou a opinião pública brasileira.

Nesta semana, argentinos também foram resgatados na mesma situação em Nova Petrópolis; entre eles uma adolescente de 14 anos. Os casos, no entanto, não chegam a causar surpresa se formos nos debruçar sobre a forma como o agronegócio historicamente se constituiu no nosso país, com concentração fundiária e seletividade racial do Estado nas políticas de ocupação de terra.

A diferença entre trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão é meramente jurídica, uma vez que desde a abolição da escravatura não existe uma legislação que ampare e regulamente a propriedade de pessoas por outras pessoas. Ou seja, juridicamente não se pode mais caracterizar o escravo como propriedade do senhor.

O termo “trabalho análogo à escravidão” é utilizado no artigo 149 do Código Penal Brasileiro para se referir à tipificação e à punição dessa relação de trabalho na qual se reduz pessoas à condição análoga à de escravos. Contudo, ainda que relações de escravidão não estejam amparadas por uma legislação, isso não quer dizer que essas relações não continuam existindo, afinal a legislação brasileira e as políticas sempre favoreceram o lado mais forte da balança, ou seja, o proprietário da terra. 

Por isso a persistência do trabalho escravo também está relacionada à concentração fundiária e à seletividade racial do Estado quando o assunto são as políticas de acesso à terra no Brasil. É neste espaço onde pessoas brancas possuem mais força na tomada de decisão, selecionando pautas e demandas, como as entidades do Agronegócio representadas pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), no Legislativo. Por outro lado, também ocorre a seletividade racial que classifica negativamente atores, pautas e ações de não-brancos, como indígenas e quilombolas.  

Outra evidência da relação entre a permanência do trabalho escravo e a concentração fundiária, que historicamente seleciona racialmente as políticas de acesso à terra, é a morosidade na regulamentação do Artigo 243 da Constituição. Também conhecido como PEC (Projeto de Emenda Constitucional) do Trabalho Escravo, ele discute a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localiza a exploração de trabalho escravo. Aprovado em 2013 após mais de uma década de tramitação na Câmara e no Senado, ele nunca foi regulamentado por legislação específica. 

Ao longo da discussão da PEC e logo após sua aprovação, a FPA propôs um projeto de lei (PL 3842/2012) que restringia a definição do que poderia ser considerado trabalho escravo, boa parte deste projeto foi incorporado na Portaria do Ministério do Trabalho referida acima e publicada em troca do apoio da FPA a Temer. Mesmo que tenha fracassado a aprovação desse projeto de lei e mesmo que a portaria tenha sido revogada, o fato é que nunca se expropriou uma propriedade no território brasileiro na qual tivesse sido identificado trabalho escravo. 

Em 2015 o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) adotou a Instrução Normativa 38, com vistas a normatizar a fiscalização de propriedades identificadas como em descumprimento de sua função social pelo emprego de mão de obra análoga à escravidão. Contudo, essa normativa foi suspensa pela Advocacia Geral da União (AGU) com a justificativa de que ainda não há regulamentação legal para proceder à expropriação dessas propriedades. 

(Foto:Freepik)

 

Ironicamente, e como forma de se aproveitar da visibilidade midiática gerada pela repercussão do caso dos escravizados do vinho e revertê-la em compliance, o partido União Brasil, representado por seu deputado Felipe Becari (União-SP), propôs em 1° de março de 2023 um Projeto de Lei (777/2023) para regulamentação da expropriação de terras em caso de trabalho análogo à escravidão. A ironia está no fato de que o partido é composto por lideranças tradicionais da bancada ruralista, tendo como membro do diretório goiano o governador Ronaldo Caiado. Será necessário observar que tipo de veto a seletividade racial irá exercer neste projeto de lei, se ele for algo mais que uma jogada de marketing.

Entender a relação entre classe e raça e sua co-constituição histórica em países que foram colonizados, como o Brasil, ajuda a qualificar nossa interpretação sobre as causas da permanência da escravidão, indo além da questão da precarização do trabalho ou da concentração fundiária. Para explicar as condições de possibilidade da permanência da escravidão em 2023 e de sua suavização ou relativização, como ficou visível em algumas das reações públicas ao caso da Serra Gaúcha, precisamos entender a branquitude como aspecto central de uma sociedade marcada pela supremacia branca, apesar de ser constituída pela maior diáspora de pessoas traficadas da África.

Sobre as autoras

Camila Penna de Castro é pesquisadora e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ela integra o Grupo de Pesquisa em Sociologia das Práticas Alimentares (SOPAS)

Ana Lopes é socióloga e mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

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